Biografia da Autora

Camila Passatuto nasceu em 1988, na cidade de São Paulo. Autora dos livros "Nequice: Lapso na Função Supressora" (Editora Penalux, 2018) e "TW: Para ler com a cabeça entre o poste e a calçada" (Editora Penalux, 2017).

Editora do projeto editorial O Último Leitor Morreu (conheça o projeto e as publicações). Escreve desde os 11 anos e começou a atuar nos meios digitais, com blogs de poesias e participações em diversas revistas e projetos literários, em 2007.

Contato: camila.passatuto@gmail.com


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Verão de 2019

Acho que foi o calor. Ou muito advérbio, sei lá. Você leu minha tatuagem, ligeira entre goles na limonada batizada, e ignorou todo o espaço que abrigava ruínas untuosas na aleatória padaria do antigo Sacomã.
Quarta-feira. Meio-dia. Certeza que foi o calor. Você tirou Rimbaud da bolsa - quem anda com um peso desses em eras infernais? - descontinuou meu reparo à oratória insubordinada, que era empregada no pensamento, nas ideias de poder e destroços, naquele instante.
Aliterou e travou minha atenção. Fazia uns 37 graus e as cores do ambiente transmutavam entre fígado na chapa e moedas de 50 centavos.
Foi o suor. Talvez tua língua a saborear o salgado do buço acalorado, ou o alarme do relógio de pulso que reclamava atenção, pois, ai de nós, a vida que se interrompia, por descuido da ordem industrial de telhas a constatar o progresso de cidade, em seu umbigo cinza, a nosso favor.
E teus olhos anunciavam despautérios, notícias falsas, filmes velhos e trens lotados de inocências. E eu gostava das mensagens silenciadas pelo futuro não executado de um "oi".
Matem as vírgulas!
Vestia um vermelho desbotado e roubava a admiração do que é bellus. E o mundo deixou de respirar, guerras explodiram as cabeças do poder, a lama secou, Pompéia furtou de nós qualquer ideal, as crianças foram enterradas nuas e os jornais riram do meu susto coagido.
Acho que foi o calor. Quem mais diria?
As pessoas nas ruas continuaram tristes, os cães atropelados de propósito e nenhuma luta dignou seu fim. O desajeito matou mais dos nossos e a poesia não matinou uma esperança sequer.
No entanto. Meio-dia. Sacomã.
Levanto. Beijo tua boca de menina desconhecida. E vida segue sem juízo, quente, refém dos filhos de ódio e molestada desde o rebentar de mulher.

Entretanto,

Com gosto de moça na boca -
dizimada de pele e sangue -
saio ensolarada
da padaria.

Pão de Queijo R$ 4,50
e nada de poesia,

General.

Esculacho

Filhos do descontrole,
do medo,
do inepto ser
estranho.
Eu que cresci entre
as cruzes e terços
E visitei cultos
e pastos
E assentei
meu amor
no mundo
no mar
na mata
no vento
no copo
e na taça.
Assusto os mudos
de coerência
E minha paz
é alvo
para guerras.
Pode?
Obà Siré
Patacori
Oke Arô
E eu que
de batalhas
renasci,
acho
estranho.
Vil gente
essa que teme
verdade
diplomacia
e peito nu
sob o sol de janeiro.
E eu que
assentei
meu amor
no mundo
briguei
com o sol
e me fodi
nas sombras
Eu
acho estranho.
Brotam falares
por todos os cantos.
Credo!
Das bocas
abalizadas santas
chuva de cusparada.
Ontem atinaram
morte na minha cara
E nem ligo.
Fui eu que
assentei
nosso amor
ao mundo,
filha.
-
E os donos do bom senso são esculachados, os verdadeiros intelectuais, empíricos ou acadêmicos, diante o absurdo que configura um sonho de mau gosto, não sabem como articular ações sem que uma enxurrada de palavras aleatórias, mães de ideias incongruentes, os lampejem ao surdo giro de burrice.
-

Cantochão

Gosta quando derramo meus líquidos sobre a casa. Meu choro, meu catarro, meu sangue ovulado, minha trilha gastrópode, o suor misturado. Sei que um risco de satisfação se acomoda em teu ventre, quando escapo e patavinas me faz dobradiça e possível. Você adora.
Não sei o que deseja ler, talvez nem saiba que ainda escrevo pelos rumos apressados de documentos empilhados na repartição central da existência de um caos imaturo.
Minhas mesmices. Eu estive triste, talvez as notícias em sites vazios, talvez a distância do que é suave, talvez você em outro corpo, talvez eu em outras vulvas. Todo esse estrago, meu pó de giz, sabe?
Ainda observo pessoas. Descobri que discursos maldosos, no fundo, ainda são discursos maldosos. Manipulação e jogos de interesses. Afastei-me dessa gente com gosto de mofo e olhos maldosos. Sem prazer nas vias cifradas e pixotadas vazias. Ainda observo.
Da poética, esse cantochão que permite rematar e custodiar o pouco que somos, nada desfiz. Barracos acumulam cidades. Vi um verso avoar gente e não liguei para o fato. Estou ruim do sentir e do amimar palavras. Da poética. Nada se leva em dias de cavalhadas sobre a barriga. Entende?
Não sei o que deseja ler. E não faço nada além de dedilhar, sem estratégias e amor, essa nutriz espaçada de lógica e estrutura. Perdi metade do mundo que pairava sobre meu lampejo de mulher e não sei compor o que congrega o humano à alma, aos céus, ao lixo da vizinhança morta em dia de glória.
Hoje sou mais pedra que mulher. Talvez um muro e um sol.
Você adora.

Camila Passatuto