Biografia da Autora

Camila Passatuto nasceu em 1988, na cidade de São Paulo. Autora dos livros "Nequice: Lapso na Função Supressora" (Editora Penalux, 2018) e "TW: Para ler com a cabeça entre o poste e a calçada" (Editora Penalux, 2017).

Editora do projeto editorial O Último Leitor Morreu (conheça o projeto e as publicações). Escreve desde os 11 anos e começou a atuar nos meios digitais, com blogs de poesias e participações em diversas revistas e projetos literários, em 2007.

Contato: camila.passatuto@gmail.com


sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Ele/Ela

"Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja,
Não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja."
Belchior


Caminhou tão depressa que fez do caminho longo algo banal para o relógio. Estava na hora, não sabia ao certo que hora era aquela que por entre mistérios revelados escondia sua importância. Não sabia de nada, dos motivos que o moviam, das trapaças que com delicadeza sem sentir tropeçava. Que sem sentir... Amarrava.

Era um dia qualquer, com um compromisso qualquer. Abriu a porta de madeira que rangia feito uma fêmea mal devorada, sentou no sofá pouco confortável e tratou de banhar o ambiente com seu despretensioso olhar. Nada viu. Nada que o levasse ao delírio da transcendência infantil de tempos atrás.

Chega à sala quem um dia foi imã. Saia justa, uma camisa social quadriculada e os pés abraçados por um par de pares distintos de meia.

Ele a fitou discretamente, olhou como quem reprovasse aquela beleza molambenta, aquele cabelo longo e negro, aquela atmosfera de inocência ninfomaníaca em que ela sempre o envolvia. Ele, em um suspiro sem carisma, esnobou aquela breve criatura, tão breve que vivia em alta freqüência em seus pensamentos, que passava o dia todo pulando nas lembranças.

Ela carinhosamente despercebeu o esforço que ele fazia para manter no chão todos os sentimentos sórdidos, hoje chamados assim, tempos antes eram sonhos.

Ele percebeu que as horas eram desiguais para ambos.

Para ele aquele momento era o único segundo após o fim. Fim de anos, fim de intermináveis meses, fim de dias sem ela. O fim dos sonhos. Do sonho de ser dois, um, tudo, nada...

Para ela aquele momento era mais um segundo que pedia outros segundos, esse tempo que ainda falta. Tempo de espera, tempo de apostas infundadas, impensadas...

Dos desejos mal ditos, eram-se.

Ela nada tinha para falar. E ele pensava que ia escutar...uma palavra qualquer, um aviso implicante, um estilo de rompimento verbalizado e oficial.

Ela nada tinha em palavras.

Ele desejava.

Ela era seu imã, não importava a situação. Não importava o que se tornavam a cada tristeza ou esquecimento.

No ato mais solitário ele rompeu o silêncio. Rugiu o ambiente quando levantou do sofá. Ela estremeceu, pois tudo estaria prestes a acontecer. Tudo, Tudo que nem imaginava o quê.

Ele sabia que não agüentaria mais uma de suas meninices, as provocações e acusações sem nexos e arreios.

Resolveu tomar a atitude. Certas atitudes queimam. Mas estava disposto a incendiar, e quem ou o quê fosse frágil, iria virar cinza, cinza.

Ela estava disposta a gelar. O estomago já soprava os ventos nórdicos.

Ela, apenas, queria uma brisa que não ferisse a paisagem intocada do passado que, sem ele saber, ela o guardara intacto in memorian e no corpo e no quarto e na cama e nos versos que para ela eram dedicados e recitados por seus lábios toda noite, toda saudade, toda insanidade.

O ambiente daquele apartamento era de uma urbanização alarmante. Dois transeuntes prontos para se atropelarem. Uma placa de trânsito, roubada pelos dois nos tempos de amoras enlatadas, exposta um tanto torta na parede de textura um tanto grunge, é que assistia aquele quase engarrafamento de nada, de tudo.

Ele com a mão direita no bolso e a esquerda coçando a barba, parecia o mais centrado dos dois. Ela com a perna direita em cima do sofá, o corpo inclinado para ele de modo tímido e quase invisível, as mãos soltas, os seios firmes e algo mais a fazia ter um caráter despojado e dominador.

Mas qual dos dois iria ceder aos centímetros?

O medo de ambos de se machucarem. O medo do: não alheio, isso era contrastante, junto com a certeza da necessidade das infantis almas postas mais um vez em caminho comum.

Ela esperava o momento certo dele.

Ele esperava a certeza dela.

Eternamente o medo.

Eternamente aquele instante que não sabiam de nada, dos motivos que os moviam até aquilo, das trapaças do destino que com delicadeza sem sentir tropeçavam.

Que sem sentir se amarravam...

Qual dos dois?

Mas qual dos dois iria ceder aos centímetros?

Ele queria sonho, fechou os olhos.

Ela queria sonho, percebeu a recíproca antecipada daquele cara, que sempre antecipava, ejaculava nas preliminares, adivinhava suas dores e desejos, chegava em primeiro lugar em sua alma, até mesmo quando atrasava.

Eles queriam sonhar.

Eles queriam terminar aquele ato indeciso de desconhecidos... na cama, no café da manhã, na caricia após um murmuro, no torcer de nariz, nas brigas, no altar, nos filhos, nos problemas, no amor, nos problemas, em mais amor, na velhice, no cansaço, no orgulho, na felicidade, nas brigas, nos gozos, nos acidentes, nas sortes, na vida, na doação de suas mortes...

Mas ela esperava o momento certo dele.

E ele esperava a certeza dela...



By Camila Passatuto

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